domingo, 29 de janeiro de 2017

Dominância nos cães: um mito perigoso

Dominância ainda é hoje em dia um meme que perdura no mundo dos cães. O motivo para a subsistência de um meme, é desconhecida, mas certamente que no mundo do treino e comportamento de cães, este perdura porque “se ouve falar disso” e porque “toda a gente diz”. A grande maioria das pessoas que fala da dominância dos seus cães, ou de cães dominantes, não sabe ao certo de onde essa informação veio, nem reflectiu activamente sobre a veracidade deste conceito. Felizmente, hoje em dia já sabemos que este conceito é completamente errado e inútil, não tem expressão nenhuma no relacionamento que temos com os nossos cães nem existe de acordo com a ciência do comportamento canino.
De onde vem o conceito de dominância?
A ideia de que o cão é dominante vem da extrapolação de um conceito que foi primariamente estruturado no estudo dos lobos – que hoje em dia está em desuso para estes animais. Na altura em que estudaram lobos á dezenas de anos atrás, o conceito de lobo dominante ou alfa foi apresentado pelo Dr. David Mech biólogo e estudioso do comportamento de lobos e as primeiras pessoas a escreverem um livro sobre treino de cães, os monges de New Sketee usaram esse conceito tentando imitar o que viram descrito como comportamentos demonstrados por lobos alfa. Hoje em dia o próprio Dr. Mech já provou que a ideia por ele mesmo difundida sobre os lobos não tem aplicabilidade nos relacionamentos entre lobos. Infelizmente a extrapolação feita pelos Monges de New Sketee no seu livro de treino aos cães, perpetuou durante os anos como um meme, e perdura até hoje em centros de treino e junto de pessoas que estão desactualizadas ou mal informadas.
O meu cão é dominante!
Os cães detêm algumas características morfológicas que podemos afirmar como “quase” certas. O cão é preto, grande, focinho achatado ou longo, orelhas caídas, peludo ou pelo curto, etc…. Apenas estas características deveriam ser usadas na frase “o meu cão é…”, tudo o resto não faz sentido pois não é fixo. Vamos dar um exemplo. O seu cão pode demonstrar medo ao som dos trovões, mas isso não faz dele um cão medroso. O seu cão seu cão não tem medo de tudo! Ele tem medo de algo específico. O mesmo com comportamentos como por exemplo agressão. O seu cão pode demonstrar comportamentos agressivos quando vê cães de porte muito grande, mas adorar brincar com outros cães. Logo, não faz sentido dizer o meu cão é agressivo porque ele não acorda agressivo e deita-se agressivo, ele simplesmente demonstra um determinado comportamento a um estímulo específico. A dominância se existisse, também nunca poderia ser tida como uma característica da personalidade do seu cão. Visto que a suposta dominância do cão implica, conforme o conceito popular, uma interacção com outros (cães ou pessoas) o seu cão não seria dominante, ele poderia na melhor das hipóteses demonstrar comportamentos que você considera dominantes em algumas alturas e em relação a alguns estímulos.
Dominância e Agressão
Muitas vezes o mito do cão dominante vem de mãos dadas com o conceito de “agressão”. Mas a palavra dominante é usada neste contexto como uma explicação simplista e completamente errada para um comportamento complexo como são os comportamentos agressivos. Os cães demonstram comportamentos agressivos para se defenderem ou afastarem estímulos que os assustam ou dos quais desconfiam por algum motivo, também podem fazê-lo para proteger um recurso ou território mas o afastamento do estímulo indesejado é sempre o motivo que está por trás. Já a aquisição de status social não tem absolutamente nada haver com isto. Em que é que “mandar” ou “não mandar” está relacionado com o cão que rosna ou mostra os dentes quando o veterinário lhe tenta mexer numa pata partida? Em que é que ser aquele que “manda lá em casa” está relacionado com o cão que morde o cão da vizinha, que lhe ladra da janela todos os dias? Em que medida o “querer estar acima de nós”, está relacionado com o cão que arreganha os dentes quando tentamos força-lo a largar o papel que tem na boca? A explicação correcta é exactamente a verdadeira. O cão não gosta de ser forçado a abrir a boca e da interacção conflituosa desencadeada quando tem um papel na boca, ele criou um relacionamento conflituoso com o cão da vizinha por causa do historial de interacções com ele pela janela, ele demonstra comportamentos agressivos ao veterinário porque lhe dói e porque as interacções dele no veterinário lhe trazem más memórias. Querer justificar comportamentos que não entendemos com ideias antiquadas e erróneas como “porque ele é dominante” chega mesmo a ser perigoso.
Uma ideia perigosa
A ideia ultrapassada de que existem cães dominantes e que estes “querem mandar” e que fazem isso usando comportamentos agressivos e que temos que lhes mostrar que quem manda somos nós, é muito perigosa. Se essa ideia fosse inócua, a grande maioria dos treinadores não despenderia um segundo do seu tempo a tentar desmistificar esta ideia ou a informar as pessoas acerca do tema. No entanto, este mito é de facto perigoso, e porquê? Porque enquanto lhe dizem que o seu cão é dominante e que para resolver o problema deve mostrar-lhe quem manda, o seu cão vai continuar a demonstrar o comportamento problemático porque ninguém o está realmente a resolvê-lo. Enquanto o mandam passar à frente dele, caminhar à frente dele, comer bolachas Maria antes dele porque ele só pode comer depois, enquanto o mandam empurrar fisicamente o seu cão de 30kg ao chão e segurá-lo lá, o seu cão vai continuar a ladrar ao cão da vizinha, a reagir quando for tirar papéis da boca dele à força, e a rosnar ao veterinário. Nenhum problema fica resolvido com a aplicação daquilo que são um monte de besteiras que em nada estão relacionadas com o comportamento, ou com o treino de cães, muito menos com a exibição de comportamentos agressivos.
Se você tiver força e estômago para forçar o seu cão a rolar no chão e mantê-lo lá, vai ter sorte se conseguir fazê-lo sem levar uma mordida durante esse processo, e além disso será a única pessoa a conseguir fazê-lo. Enquanto isso os seus filhos, os avós idosos e os estranhos continuam a ter que supostamente lidar com o seu cão “dominante” pois nenhum deles vai fazer tal façanha. No final disto tudo quando o comportamento do seu cão continuar igual ou piorar, o “treinador” vai dizer que a culpa é sua que “não sabe ser o alfa” ou “não sabe mandar” ou “não se sabe impor”.

Seja cuidadoso em seguir conselhos, dicas ou informações ultrapassadas e erradas mesmo que lhe pareçam fiáveis e venham da fonte que mais lhe parece verdadeira. Muitas pessoas andam enganadas e estudar o comportamento dos cães é imperativo para podermos estar a par do que se sabe hoje em dia sobre os cães.
Nunca faça a manobra chamada alfa rollover que consiste em forçar o seu cão a deitar-se de lado e ficar lá. Se alguém lhe disser para fazer isso ao seu cão, procure ajude noutro local. Essa pessoa claramente está enganada e está a dar-lhe um terrível conselho que irá na melhor das hipóteses piorar o comportamento do seu cão e na pior das hipóteses causar ainda mais comportamentos problemáticos.
É preciso ter mão no cão! Infelizmente para muitos cães e os seus tutores este mito propaga-se pelos meios menos informados e conhecedores do verdadeiro comportamento e treino actualizado de cães. Muitos tutores adquirem um cão e mal o têm já estão a ser aconselhados a “terem mão no cão” ou “pulso forte” e “mandar quem manda”, principalmente se o cão for de determinada raça ou raças grandes. O absurdo desta ideia, faz com que as pessoas se esqueçam que elas já mandam em tudo no seu cão. Quando trazemos um cachorrinho ou cão adulto para casa, ele passa a depender de nós para tudo, inclusive para se manter vivo. Se quer comer, somos nós que compramos e damos, água, cuidados médicos, abrigo, carinho, companhia, amizade, oportunidade de sair, passear, estar com outros cães, ou seja literalmente tudo o que faz com que este cão possa viver a sua vida esta literalmente nas suas mãos. Que mais temos que mandar? Nós já controlamos todos, mesmo TODOS os recursos da vida do cão, não me parece sequer lógico pensar que temos que ser “mais firmes” porque senão ele pensa que manda. Ele manda em quê necessariamente?
O que está por trás destas ideias antiquadas é a justificação do uso de métodos antiquados e baseados em aversivos. Desde uso de enforcadoras, coleiras de bicos, de choques, morder o cão, bater-lhe, enforca-lo com a trela, atirá-lo ao chão, manuseá-lo de forma invasiva, tudo isto pode ser justificado com “porque tens que deixar de ser mole com o teu cão e tens que mostrar quem manda”. Educar não é sinónimo de severidade, assim como treino positivo não é treino permissivo. Uma não tem nada haver com a outra.
Educar e treinar o seu cão? Sempre. Como? Sem uso de mitos e ideias do século passado, mas sim com métodos comprovadamente eficazes, paciência e nunca desistindo do cão e do objectivo em vista. Alguns comportamentos podem ser mais complicados de mudar, levarem mais dedicação, tempo ou treino, podem exigir mais técnica ou menos técnica, mas sempre se consegue desde que estejamos motivados e dedicados. Remédios rápidos e fáceis não existem, se existissem ninguém precisava de ajuda profissional e seria simples até para si.
Espero que com este artigo, muitas pessoas reflitam sobre um mito que hoje em dia está desgastado entre a grande maioria da comunidade de profissionais actualizados. Tenha cuidado a quem entrega a educação e treino do seu cão, e a quem dá ouvidos. Já está na hora de deixarmos de papaguear mitos como se fossem realidades e colocar os nossos cães nas mãos de pessoas que não sabem o que fazem. Seja exigente, exija para si e para o seu cão o melhor sempre, porque vocês merecem e porque só assim, vão ser verdadeiramente ajudados.