Ah, lá vou eu saltar para a batalha! De certa forma, eu adoraria evitar este tópico, porque como a maioria de vocês sabe, as conversas acerca da palavra “D” causam discussões que fazem os debates acerca dos sistemas de saúde parecerem um dia no SPA. Mas eu considero o tema importante e merece consideração. Por isso, EEEEE HAH! Cá vamos nós.
Este post será apenas o início, porque o tema da dominância e dos relacionamentos sociais é na realidade longo e eu quero apenas facilitar o pensamento e a discussão saudável acerca deste tema nos cães. Como muitos de vocês sabem, algumas pessoas acham que todos os nossos problemas com os cães estão relacionados com “dominância” e aconselham os donos a “ser o cão alpha”. Do outro lado do espectro, outros argumentam que a “dominância” e até mesmo o conceito de “status social” são completamente irrelevantes para o comportamento do cão, e que o termo deveria ser completamente eliminado do nosso vocabulário. Eu não concordo com nenhum destes extremos (mas estou bem mais do lado de um do que do outro!), portanto segurem-se!
Antes de mais, seria bom começar com uma definição. A simples definição de dominância como é usada pelo público em geral é algo como: “ controlo ou comando sobre outros”. No entanto, (e este é um grande “no entanto”) essa NÃO é a definição usada pelos profissionais que estudam comportamento animal e que cunharam o termo para descrever um tipo de relacionamento social em animais não-humanos. Em termos etológicos, “dominância” refere-se a “acesso prioritário a um recurso limitado”. Por outras palavras, se existir apenas uma mesa livre num restaurante, quem vai ficar com ela? Você, ou a actriz famosa que está à espera?
Se pensarmos nos cães, se alguém largasse uma febra de porco entre dois cães, quem ficaria com ela? Se vocês repetir esta acção muitas vezes e sempre o mesmo cão ficar com a costeleta, esse cão é descrito na literatura como “dominante” sobre o outro, SE ambos os cães quisessem a febra de igual forma. O cão “dominante” poderia ter acesso prioritário à comida de diversas formas; ele podia simplesmente olhar directamente para o outro cão, poderia tentar sem mais rápido que o outro, ou podia lutar para ter acesso ao mesmo. O problema é que as brigas são perigosas e um predador pode rasgar a pele de um veado com a boca. (Para saber o poder dos maxilares de um cão, tente fazer um rasgão com a boca numa carteira de cabedal. Se você conseguir, por favor envie o vídeo…aliás envie o vídeo mesmo que não seja bem sucedido!).
O potencial de dano causado por predadores sociais, é o motivo pelo qual muitos dizem que se desenvolveram hierarquias sociais nos animais, como os lobos. (Sim, eu sei que cães não são lobos. Passo a explicar). Se cada vez que um tivesse que lutar para conseguir o que quer, os genes que predispõe um indivíduo a lutar seriam eliminados do pool genético. Essa é a explicação para a existência de hierarquias sociais: elas permitem que indivíduos tenham acesso prioritário sem ter que lutar pelo recurso sem que este está disponível. Notem que lutas sérias ocorrem nalgumas espécies: em muitos animais ungulados (animais com hastes), os machos lutam todas as épocas de acasalamento pelo acesso prioritário às fêmeas. Estes são continuamente desafiados por outros machos, e despendem tanta energia a proteger as fêmeas que mesmo que não saiam magoados ou sejam mortos numa luta muitas vezes morrem durante o inverno por não terem passado tempo suficiente durante o Outono a comer para produzir suficiente gordura corporal que os suporte durante o Inverno. No entanto, antes de amadurecerem, jovens ungulados passam anos em “grupos de solteiros”, nos quais brincam às lutas, mas nenhum tem acesso prioritário a nada durante esse período. A sua comida está dispersa e o único “recurso” pelo qual competem são as fêmeas durante o período de acasalamento. Tal como este exemplo dos Veados mostra, um “recurso” pode ser muitas coisas, desde uma costeleta de porco, a um local onde dormir, a uma fêmea em cio. Mas, lembrem-se que a palavra “D” refere-se “ao acesso prioritário a um recurso” e a nada mais.
Aqui está o que a “dominância” NÃO É:
Não está relacionada com o poder de decisão acerca das acções do grupo ou de um indivíduo. Não existe na literatura nenhuma relação entre quem decide para onde vão, quando vão e o que fazem.
Não está relacionada com “quem vai à frente” (nos predadores, o membro “dominante” do grupo está muitas vezes no meio da manada se o grupo está a circular por zonas perigosas).
Não é fixa nem imutável: quem “tem dominância” pode variar conforme o tempo (à medida que um indivíduo envelhece por exemplo), conforme o espaço (um indivíduo pode tê-la num local e não noutro) e conforme o contexto (talvez um indivíduo dominante não goste de febras de porco). Em algumas espécies parece ser linear (como nas galinhas, por exemplo, onde a A está acima da B, a B acima de C e A sempre acima das C). Na maioria das sociedades dos animais mamíferos, a hierarquia é não-linear e muito, muito mais fluida e complicada.
É extremamente influenciada pela distribuição de recursos: “amontoados de recursos de alta qualidade” tendem a exagerar hierarquias sociais, o que provavelmente vem explicar porque é que lobos em cativeiro vivem obcecados por hierarquias, enquanto que lobos no seu ambiente natural parecem ser mais relaxados com os assuntos relacionados com status social (tenha isto em mente quando falarmos de cães ferais versos cães com dono).
É usualmente mantida através de displays visuais e químicos que são inatos e são específicos à própria espécie. Pode ser adquirida numa luta inicial na qual um indivíduo ganha e outro perde, ou, mais comum, por um conjunto de displays específicos da espécie. (Pense na cauda alta, orelhas erectas e postura corporal dianteira num lobo em cativeiro). Se o indivíduo continuar a lutar pelo recurso, então é estabelecida uma hierarquia.
Não é um relacionamento desejado por todos os indivíduos da mesma forma. Em sociedades sociais complexas, nem todos querem ser os primeiros da linha. Na nossa espécie, por exemplo, algumas pessoas adoram obter o status associado à fama, enquanto outros iriam considerar a possibilidade de ter acesso a uma mesa num restaurante uma troca pobre pela sua privacidade e iriam evita-la a todo o custo. Nalgumas espécies, um status alto esta associado com um aumento de responsabilidade, que pode ser um fardo pesado.
No meu próximo post, vou escrever como este termo se relaciona com os cães domésticos. Mas digo já que o termo “dominância” no treino de cães, está tão disseminado que causam etólogos como eu querer espetar lápis nos olhos. Os exemplo são intermináveis: “O seu cão não vem enquanto não o aceitar como alpha!” (Uh, não é relevante, ver acima). “Ensine ao seu cão um “deita dominante” e ele irá respeitá-lo de manhã!” (Uh, não é relevante, ver acima). Eu suspeito que muito disto vem das duas diferentes definições de dominância usada pelos biólogos e pelo público em geral. Eu também penso, embora admita estar a adivinhar, que a nossa espécie ama a ideia de controlo e algo que sugira que podemos fazê-lo de forma rápido é sedutor. Seja qual for o motivo, o uso errado do conceito de dominância está disseminado.