quarta-feira, 5 de agosto de 2020
segunda-feira, 3 de agosto de 2020
Não podemos salvar todos
Os incêndios de Santo Tirso vieram mostrar como a lei de defesa dos direitos dos animais é redundante, ineficaz, uma farsa. Como instituições como a DGAV são uma anedota paga por nós, como veterinários municipais não agem quando devem, como a GNR e polícia são impassíveis ao sofrimento de outros animais, e depois disso tudo, como se passam culpas de uns para os outros, sem que ninguém seja devidamente responsabilizado. Mas também abriu uma outra caixa de pandora, a dos “canis ilegais” mas eu diria mais, será que são apenas os ilegais com os quais nos devemos preocupar?
Há muitos anos que me dedico ao estudo dos cães resgatados. Tenho inúmeros cursos, alguns online e vários presenciais, e variadas experiências de trabalhar em associações internacionais como a Royal Society for Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA) em Inglaterra, a Battersea Dog’s Home em Londres, e a Dogs Trust na Escócia. Em Portugal já dei vários cursos sobre treino e educação de cães resgatados, assim como gestão de canis. Já fiz consultoria em variados canis e inclusive trabalho de treino, consultoria e acompanhamento em projectos em CROAs. Já fiz variados seminários sobre treino e gestão de canis de cães resgatados.
A minha vontade de falar de tanta coisa que está errada desde que assisti em estado de choque aos incêndios é avassaladora, mas não é desde esse dia, que a minha angústia me acompanha.
Há cerca de 12 anos atrás, propus-me a ser voluntária numa associação cá em Portugal, depois de ter trabalhado com a RSPCA e a Battersea Dogs Home durante alguns anos em Inglaterra achei que tinha adquirido algum conhecimento e experiência que pudesse ajudar os cães e associações. Aceitaram-me de braços abertos, mas não queriam que eu visitasse o canil. Eu insisti porque tinha que saber como ia aplicar as minhas capacidades naquele local e ajudar os cães. Quando fui visita-la o que vi foi um depositário de cães e nem 5 minutos passaram antes que entendesse o porquê não quererem que eu visse.
Eram mais de 500 cães num espaço onde garantidamente não deviam estar mais de 100 pelas minhas contas. Vi cachorros mortos em baldes, cães à luta por um único espaço seco porque não se via o chão, este era feito de fezes, urina, vomitado e sangue. Vi cães que estavam naquele local de horror, qual inferno de dante, há mais de 13 anos! Vi cães a morrer doentes, cães encostados a paredes a tremer, cadelas e cães a procriar, vi baldes gigantes carregados de comida e cães em cima dos mesmos. Não vi uma única taça de água limpa, nem me lembro de ver água embora tudo estivesse molhado. Não me lembro de ver nenhum cão bem. Nem um. Eu não poria nenhum animal, ou nenhum ser vivo senciente naquele local, mas ali estavam cerca de 700.
Aquilo era no seu melhor hoarding e no seu pior, fruto da mentalidade tacanha e fechada de muitas pessoas que querem “salvar” todos os cãezinhos e vão acumulando os mesmos e perdem o controlo.
Nessa noite chorei até me secarem as lágrimas e pensava que todos aqueles cães estariam melhor mortos e garanto-vos que quando se pensa assim, o horror que te encheu os olhos e a alma é inexplicável. Eu tenho o cheiro e as imagens daquela “associação” até hoje gravadas, não como tatuagens, mas como cicatrizes.
Essa experiência, mal eu sabia, seria apenas o começo de um pesadelo e uma jornada que foi tentar trabalhar com canis e associações em Portugal, porque mal eu sabia que aquele horror era recorrente e continua a ser ao fim de mais de uma década, e porquê? Porque as pessoas podem. Qualquer pessoa em Portugal pode abrir uma “associação”, “canil”, seja o que for e colecionar cães ou depositar cães. Os canis “legalizados” não são melhores dos que não estão “legalizados”. Legalizar um canil não oferece garantia de nada, zero.
Associações e canis são locais que têm como objectivo ser um local de passagem até se conseguir um lar permanente e adequado para o cão. Este processo de recolha, tratamento, avaliação, educação e adopção de um cão demora tempo, requer competências específicas e custa dinheiro.
Mas nas associações falar de dinheiro é tabú e por isso a maioria não sabe gerir o dinheiro que têm de forma eficaz e sustentável e por isso continuamos em 2020 a ver associações gigantes e com dezenas de anos, subitamente a fazerem pedidos recorrentes de comida. Quando uma associação tem que pedir comida tudo está mal. Se uma associação não tem fundos para garantir que os cães comam, então que tipo de tratamento e condições estarão os cães a ter no local? Se não existe comida, existirão tratamentos médicos? Acompanhamento emocional e comportamental? Não, óbvio que não. Mas quando existe um pedido de ração porque os cães estão a morrer à fome, ninguém levanta a questão de como isso pode ser possível.
Eu vou simplificar, a questão é colocada em termos pragmáticos e isto requer mente clara, conhecimento, experiência e uma dose grandiosa de sangue frio. A primeira coisa que temos que aprender neste “trabalho” de cuidar pelos indesejáveis é “não podemos salvar todos.” Simplesmente impossível. Enquanto este pensamento prevalecer acabamos com canis como os de Santo Tirso, que são locais pavorosos e sem condições.
Vou colocar aqui um exemplo de um post que vi há um par de semanas, mas que são recorrentes diariamente:
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