segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Não podemos salvar todos

Os incêndios de Santo Tirso vieram mostrar como a lei de defesa dos direitos dos animais é redundante, ineficaz, uma farsa. Como instituições como a DGAV são uma anedota paga por nós, como veterinários municipais não agem quando devem, como a GNR e polícia são impassíveis ao sofrimento de outros animais, e depois disso tudo, como se passam culpas de uns para os outros, sem que ninguém seja devidamente responsabilizado. Mas também abriu uma outra caixa de pandora, a dos “canis ilegais” mas eu diria mais, será que são apenas os ilegais com os quais nos devemos preocupar?
Há muitos anos que me dedico ao estudo dos cães resgatados. Tenho inúmeros cursos, alguns online e vários presenciais, e variadas experiências de trabalhar em associações internacionais como a Royal Society for Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA) em Inglaterra, a Battersea Dog’s Home em Londres, e a Dogs Trust na Escócia. Em Portugal já dei vários cursos sobre treino e educação de cães resgatados, assim como gestão de canis. Já fiz consultoria em variados canis e inclusive trabalho de treino, consultoria e acompanhamento em projectos em CROAs. Já fiz variados seminários sobre treino e gestão de canis de cães resgatados.
A minha vontade de falar de tanta coisa que está errada desde que assisti em estado de choque aos incêndios é avassaladora, mas não é desde esse dia, que a minha angústia me acompanha.
Há cerca de 12 anos atrás, propus-me a ser voluntária numa associação cá em Portugal, depois de ter trabalhado com a RSPCA e a Battersea Dogs Home durante alguns anos em Inglaterra achei que tinha adquirido algum conhecimento e experiência que pudesse ajudar os cães e associações. Aceitaram-me de braços abertos, mas não queriam que eu visitasse o canil. Eu insisti porque tinha que saber como ia aplicar as minhas capacidades naquele local e ajudar os cães. Quando fui visita-la o que vi foi um depositário de cães e nem 5 minutos passaram antes que entendesse o porquê não quererem que eu visse.
Eram mais de 500 cães num espaço onde garantidamente não deviam estar mais de 100 pelas minhas contas. Vi cachorros mortos em baldes, cães à luta por um único espaço seco porque não se via o chão, este era feito de fezes, urina, vomitado e sangue. Vi cães que estavam naquele local de horror, qual inferno de dante, há mais de 13 anos! Vi cães a morrer doentes, cães encostados a paredes a tremer, cadelas e cães a procriar, vi baldes gigantes carregados de comida e cães em cima dos mesmos. Não vi uma única taça de água limpa, nem me lembro de ver água embora tudo estivesse molhado. Não me lembro de ver nenhum cão bem. Nem um. Eu não poria nenhum animal, ou nenhum ser vivo senciente naquele local, mas ali estavam cerca de 700.
Aquilo era no seu melhor hoarding e no seu pior, fruto da mentalidade tacanha e fechada de muitas pessoas que querem “salvar” todos os cãezinhos e vão acumulando os mesmos e perdem o controlo.
Nessa noite chorei até me secarem as lágrimas e pensava que todos aqueles cães estariam melhor mortos e garanto-vos que quando se pensa assim, o horror que te encheu os olhos e a alma é inexplicável. Eu tenho o cheiro e as imagens daquela “associação” até hoje gravadas, não como tatuagens, mas como cicatrizes.
Essa experiência, mal eu sabia, seria apenas o começo de um pesadelo e uma jornada que foi tentar trabalhar com canis e associações em Portugal, porque mal eu sabia que aquele horror era recorrente e continua a ser ao fim de mais de uma década, e porquê? Porque as pessoas podem. Qualquer pessoa em Portugal pode abrir uma “associação”, “canil”, seja o que for e colecionar cães ou depositar cães. Os canis “legalizados” não são melhores dos que não estão “legalizados”. Legalizar um canil não oferece garantia de nada, zero.
Associações e canis são locais que têm como objectivo ser um local de passagem até se conseguir um lar permanente e adequado para o cão. Este processo de recolha, tratamento, avaliação, educação e adopção de um cão demora tempo, requer competências específicas e custa dinheiro.
Mas nas associações falar de dinheiro é tabú e por isso a maioria não sabe gerir o dinheiro que têm de forma eficaz e sustentável e por isso continuamos em 2020 a ver associações gigantes e com dezenas de anos, subitamente a fazerem pedidos recorrentes de comida. Quando uma associação tem que pedir comida tudo está mal. Se uma associação não tem fundos para garantir que os cães comam, então que tipo de tratamento e condições estarão os cães a ter no local? Se não existe comida, existirão tratamentos médicos? Acompanhamento emocional e comportamental? Não, óbvio que não. Mas quando existe um pedido de ração porque os cães estão a morrer à fome, ninguém levanta a questão de como isso pode ser possível.
Eu vou simplificar, a questão é colocada em termos pragmáticos e isto requer mente clara, conhecimento, experiência e uma dose grandiosa de sangue frio. A primeira coisa que temos que aprender neste “trabalho” de cuidar pelos indesejáveis é “não podemos salvar todos.” Simplesmente impossível. Enquanto este pensamento prevalecer acabamos com canis como os de Santo Tirso, que são locais pavorosos e sem condições.
Vou colocar aqui um exemplo de um post que vi há um par de semanas, mas que são recorrentes diariamente:

Este post é um resultado direto do pensamento “vamos salvar todos” e consequentemente do pensamento “ não vamos gerir o dinheiro”. Esta associação deveria ter analisado se teria dinheiro para os tratamentos deste cão primeiro. Caso não tivesse, tem que pensar quanto ficará o tratamento deste cão. Porquê? Porque se o tratamento deste cão avultar a – e vou ser super simpática - €300 são menos €300 que têm para alimentar, medicar e assistir os outros cães que já estão a seu cuidado. Neste caso específico e como é recorrente cá em Portugal faz-se caso a caso. Então decidiram que um cão idoso com imensos problemas físicos e provavelmente impossíveis de recuperação (e nem falo do estado emocional e comportamental do cão) deveria ser tratado porque “a cauda abana e ainda come e isso ela quer e nós também”. Esta romantização apela ao coração de qualquer um que goste de animais, mas é inútil, dogmático e danoso para todos. Este cão, nem fisicamente estaria apto a ser recuperado. Foi tirado da rua num estado muito mau, estaria sem dúvidas com quadro de dor, para quê mantê-lo vivo? Mesmo que conseguissem fazê-lo à custa de muitos recursos, financeiros, tempo, assistência, etc… depois quem iria adoptar este cão? Quantos cães de 14 anos cheios de doenças que irão, mesmo que tratadas, precisar de constante supervisão e tratamento, são adoptados por este país fora? São muito poucas as pessoas que decidem adoptar cães idosos, e ainda menos as que decidem adoptar cães idosos e doentes! Qual foi o pensamento por trás deste acção? Salvar?! Serem heróis? Quanto dinheiro terão gasto com este único cão logo inicialmente e até depois que poderia ter sido investido no melhoramento e gestão dos cães que já estão nas suas mãos, e precisam de acompanhamento diário?
Eu sei que já muitos devem estar a pensar que crueldade que é, mas o pragmatismo a isto obriga. A crueldade não vem do meu pensamento e acção, vem de quem abandonou, vem de quem procriou, de quem não esterilizou, de quem não cuidou. Quem acolhe este cão nestas condições é obrigado a tomar decisões e fazer coisas que outros não fizeram. Não podemos salvar todos, e temos que saber o que andamos a fazer senão acabamos sempre com canis repletos de cães em condições pavorosas.
No outro dia li um outro post que não coloco aqui para salvaguardar identidades, duma senhora que se queixava de ter uma reforma de €300 e 21 animais a seu cargo. VINTE E UM! CLARO, que não tem condições para cuidar dos mesmos, mas isso não parece ser impedimento para nada pois contava como tinha tirado da rua uma cadela que não se movia. Levou-a ao veterinário (mesmo sabendo que não o pode pagar) e pediu todos os exames possíveis e descobriu que a cadela tem variados problemas neurológicos graves, alguns detectados num Cat SCAN que sei que rondam os €500 por exame porque eu fiz um à minha falecidade Safira quando tentava ajuda-la com a saúde dela. Esta senhora pedia que depositassem dinheiro na conta dela porque chorava muito e não tinha como cuidar do cão.
Claro que pensar em deixar o cão na rua, especialmente um em sofrimento está fora de questão, eu mesma tenho essa regra. Aliás eu tiro da rua imediatamente cachorros ou gatinhos bebés, ou cães e gatos que pareçam estar em sofrimento ou perigo eminente. A minha Beque que circulava no meio da estrada cega foi o caso. Mas se passar por um cão adulto aparentemente bem ( sendo que nenhum cão na rua está bem ) eu não faço nada, simplesmente porque não posso ter mais animais, e porque todos os dias passo por mais do que um e não os posso levar a todos.
Muitas vezes chamo as autoridades competentes e apresento queixas. Se um animal precisar de socorro imediato por estar em sofrimento eu socorro, levo ao veterinário para uma avaliação primária, mas na hora decido o que fazer. Se eu não tenho viabilidade financeira e não posso ficar com o cão tenho duas escolhas, eutanasiar o animal acabando com o seu sofrimento ou entrega-lo ao canil municipal onde são obrigados a cuidar dele ( algo que já fiz muitas vezes). Qual o problema de tirar um cão da rua extremamente doente, que precisa de muitos cuidados médicos que são caros sem termos o valor nas nossas mãos? É que a terceira opção é pedir ajuda, só que o Carlos, a Vanessa, e o João que vão doar €100 para os exames deste cão, assomam a €300 que não vão cair nas contas de associações repletas de cães saudáveis que precisam de acompanhamento imediato para poderem sair dali o mais rapidamente possível. Porque estes indivíduos e o dinheiro que vão doar não vai ajudar outros que precisam.
Tudo se resume ao facto que temos que escolher. A quantidade de dinheiro doado a indivíduos com contas astronómicas no veterinário que pagariam meses e meses de comida, água, tratamentos médicos menos invasivos a centenas de cães, não pode ser ignorado! Isto não é bom para ninguém. Claro que muitos cães idosos, doentes etc, são adoptados, mas estes perfazem a minoria, e enquanto a sociedade portuguesa se parece mover apenas para os cães e gatos que estão muito mal, parecem ignorar e esquecer rapidamente os milhares fechados em locais como os de Santo Tirso que dariam animais de companhia fantásticos mas não chamam a atenção imediata de ninguém.
Esta gestão pobre e disparatada de recursos ocorre na grande maioria das associações que se movem por uma causa que é irreparável. Sempre haverá mais cães que lares e nenhum cão deve viver em sofrimento seja físico, emocional ou comportamental, isso não é ajudar. Isso não é resolver problemas.
Para finalizar todas estas decisões levam a que as associações tenham as suas acções limitadas. Passam o tempo a contar tostões, a pedir dinheiro para o básico e nunca se dedicam realmente ao que deviam fazer, oferecer condições boas, acompanhamento diário, tratamento permanente, e ainda terem recursos financeiros e outros para educar a população, ensinar as pessoas como lidar com os seus cães, etc…
Enquanto a atitude salvar todos e quanto pior estiver o animal mais vamos investir nele continuar a ser o mantra, o ciclo nunca irá parar. Associações como a Battersea Dogs Home ou Dogs Trust onde os cães têm direito a educadores, passeios diários e canis com aquecedores, são realidade que acontecem não porque Inglaterra é mais rica, mas sim porque sabem gerir, e têm que gerir. Porque já passaram por aquilo que Portugal se recusa a fazer consistentemente que é olhar a realidade nos olhos e lidar com a mesma. Para ajudar temos que saber ajudar.
Chega de ver miúdos que nada entendem de cães a tira-los das ruas às dezenas apenas para glorificação do ego, chega de pedidos de milhares de euros para tratar animais muitos doentes que jamais serão adoptados, chega de espremer o fluxo financeiro das doacções de tal forma que apesar de doarmos tanto dinheiro na ajuda aos animais, a realidade é que parece que ajudamos tão poucos.
Ajudar poucos mas bem, suplanta tentar ajudar muitos e mal.
Chega de depositátios, de egocentrismos, de dogmatismos, para melhorar exige-se coerência, firmeza, decisões muito difíceis, gestões bem feitas.

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