quinta-feira, 22 de maio de 2008


PARA ALÉM DO MITO DA DOMINÂNCIA: DE ENCONTRO A UM ENTENDIMENTO DO TREINO COMO UMA PARCERIA - por MORGAN SPECTOR



Introdução


Treinadores têm seguido um modelo de treino baseado nos comportamentos dos lobos, particularmente lobos Alpha. O centro deste modelo é a noção de “dominância”. Este modelo tem falhas conceptuais na medida em que se baseia em conceitos errados acerca do comportamento dos lobos, assim como conceitos errados acerca da interacção entre cães e humanos. Como uma espécie diferente dos cães, humanos não podem gerar comportamentos interespécies e esperar que esses comportamentos sejam interpretados como outra coisa senão agressão. Um modelo de treino mais preciso e produtivo é olhar o treino do ponto de vista da simbiose: uma cooperação interespécies baseada numa forma de benefício mútuo.


As raízes do treino tradicional

O treino canino tem sido caracterizado pela tendência do uso da força e da compulsão. Por exemplo, Most descreve a base do seu método de treino da seguinte forma:
“Qual é, na realidade, o actual objectivo do treino? É que o cão só faça o que acharmos conveniente ou útil, e se iniba de fazer o que é inconveniente ou detrimental para nós. Este objectivo não pode ser totalmente compatível com o que é aceitável ou vantajoso para o cão em si...”..”...é apenas quando um cão aprende que a adopção ou abandono, mesmo que discordantes, duma certa acção é para a sua própria vantagem, que o treino pode prosseguir com uma base sã. Tal é o objectivo da compulsão.” (Most, pp.24-25)

Esta visão não foi alterada, em virtualmente nada, desde 1910 quando Most publicou o seu primeiro livro até 1960 quando Koehler escreveu o seu guia de treino básico. Koehler expressou a sua filosofa da seguinte forma:

“ As revistas dignificam os balbúcios dos ‘psicologistas caninos’ que roubariam a um cão o direito de nascença comum a todas as criaturas de Deus: o direito a sofrer as consequências dos seus próprios actos.”

“Existirá sempre mais enfase e claridade no contraste entre o castigo e a recompense do que da técnica que dita ‘só coisas boas’ e se eles obedecerem ‘ coisas ainda melhores’. E existe mais significado e consciência da vida se existir um entendimento das consequências de uma acção favorável e não favorável. Portanto não podemos deprivar o cão do seu privilégio de experienciar as consequências do certo e errado, ou, dito de outra forma, do castigo assim como da recompensa.” (Koehler,p.21).

Apesar das diferenças (Most, por exemplo, rejeitava uma visão antropomórfica dos cães, enquanto que Koehler, como prova a citação acima feita, tende a ter uma visão antropomórfica), Koehler e Most ambos assumem que os humanos de alguma forma tinham o direito a compelir os cães a agirem de formas aceitáveis aos humanos. Para Most a base disto é clara: ele foi uma das primeiras pessoas a treinar cães para a trabalho militar e policial. Os livros de Koehler foram escritos para o público mais geral, aqueles que tinham cães de companhia em casa. O que podemos assumir do trabalho de Koehler é claro mas não dito: cães vivem dentro da sociedade humana e devem seguir as regras humanas, e os humanos devem usar a compulsão para fazer com que os cães sigam essas regras. Mas havia mais por trás. Existia uma visão que a compulsão no treino elevava o cão. Esta extensão no antropomorfismo implícito por Koehler ganhou verdadeiro terreno com Vicki Hearne que se apresenta como uma seguidora de Koehler. Hearne argumenta que:


“Koehler acredita que, contra o cepticismo dos dois ultimos dois séculos, obter absoluta obediência de um cão – e ele quer dizer absoluta – confere nobilidade, caracter e dignidade ao mesmo” (Hearne,p.41) No entanto nenhum dos programas directos e duros do Koehler ou dos voôs pedagógicos de Hearne responde a uma questão essencial: o que é que realmente dá aos humanos, o direito de inflingir métodos de treino em cães que só podem ser descritos como continuamente duros e fisicamente punitivos? Longe de conferir “nobilidade, caracter e dignidade ao cão” estes métodos deixam de facto o cão sem espaço para fazer nada a não ser tornar-se um subserviente sob a constante ameaça da do castigo.

Dominância: a ovelha etológica disfarçada de lobo

Aqui entram os monges de New Skete. O trabalho dos monges foi considerado muito progressivo. Os Monges foram os primeiros treinadores modernos a articular uma base teórica para o uso da compulsão no treino. O seu modelo foi a alcateia de lobos (ou pelo menos a alcateia de lobos como eles a entendiam). Eles escreveram “Para aprender os cães, aprendam os lobos”. E escreveram: “... O lobo e o cão têm semelhanças incríveis. Ambos orientam-se dentro de um grupo e preferem não estar isolados por longos períodos de tempo...Ambos respondem à liderança de uma “figura-Alpha” à qual olham para ordens e directivas.” (Monks at 12).


Os monges acreditam na teoria de que “desde que deprivamos os cães, através da domesticação, da sua vida normal em matilha, o cão adoptou-nos como a sua nova matilha. Um cão vê as pessoas nas suas vidas como companheiros dentro dessa matilha. Assim que o cão entende isto, ele pode começar a entender métodos de treino que, enquanto incluem o cão na matilha, diminuem a sua posição hierárquica.” (Monks at 13).


Esta é a “rationale” que veio a ser conhecido como a teoria da dominância: Os cães veêm-se a viver em matilha com humanos, como tal estes têm que imitar comportamentos de matilha e, especificamente assumir uma posição de Alpha dentro dessa mesma matilha. Ironicamente, apesar da analogia aos lobos ser recente, a noção de que os homens e os cães formam uma matilha dentro da qual os humanos devem ser soberanos não é. Most articulou a mesma teoria em 1910.


“ Numa matilha de cães novos, lutas ferozes ocorrem para decidir como se irão colocar na hierarquia da matilha. E numa matilha composta por homens e cães, competição canina por importância e status é aos olhos do treinadore clara... Tal como numa matilha de cães, a ordem da hieraquia numa combinação homem e cão só pode ser estabelecida por força física, ou seja por uma actual luta, na qual o homem sai instantaneamente victorioso. Tal resultado só pode ser obtido convencendo o cão da absoluta superioridade física do homem. De outra forma o cão lidera e o homem segue. Se um cão mostra o sinal mais vago de rebelião contra o seu treinador ou lider, a superioridade física do homem como líder da matilha tem que ter expressão imediata da forma mais clara possível.” (Most em 35).


Baseado na noção que os cães e os humanos formam uma matilha unitária dentro da qual os humanos devem mandar, a “dominância” torna-se o tema central na relação entre o humano e o canino. Este “paradigma da dominância” é o que está por trás de todas as aproximações de treino que usam a força e a compulsão. Desobediência não é uma falha do cão em efectuar um comportamento quando este é pedido, mas uma rebelião contra o Alpha. Como Most diria: “Se um cão se rebelar contra o seu treinador, o uso da compulsão severa é essencial... Pois, cada vez que o cão pensa que não está a ser liderado, o instinto de competitivo canino vai aumentar e o seu instinto submissivo vai ficar mais fraco. Um dos propósitos do treino, contudo, é reverter esta condição.” (Most, 35-36).


Existem muitas falhas neste paradigma embora existe um réstia de verdade nisto tudo. A réstia de verdade é que os cães devem viver de acordo com a sociedade humana, tanto em casa como no mundo em geral, e que os humanos são responsáveis por ensinar aos cães como fazê-lo, através do treino. Mas não existe necessidade para uma teoria de “dominância” para explicar a necessidade deste treino. E vendo o propósito do treino como uma forma de alcançar “dominância” estabelece uma aproximação ao treino que facilmente se torna dura e punitiva. Como se denota, métodos punitivos são justificados pela lógica da “matilha”.


REFERÊNCIAS


Coppinger, Raymond & Lorna: Dogs – A Startling New Understanding of Canine Origin, Behavior & Evolution
Dunbar, Dr. Ian: Dog Behavior – Why Dogs Do What They Do ©1979, TFH Publications
Hearne, Vicki: Adam’s Task: Calling Animals by Name ©1982, HarperPerennial
Koehler, William: The Koehler Method of Dog Training ©1962, Howell Book Publishing
Lindsay, Steven R. Applied Behavior and Dog Training, Vol. II ©2001, Iowa State University Press
Monks of New Skete, How To Be Your Dog’s Best Friend ©1978, Little Brown
Most, Col. Konrad: Training Dogs – A Manual ©1954 Popular Dogs Publishing Co. Ltd., London; Reprinted 2000
by Dogwise Publishers

1 comentário:

Tiago Marques disse...

Olá Claudia!

Estive a ler os artigos até agora publicados por ti e devo dizer que gostei muito de ambos. É bom ver iniciativas destas, pessoas que dão expressão verbal àquilo que os nossos amigos caninos nos tentam tantas vezes dizer com a ternura do seu olhar.

Continua =)

Beijinhos
Tiago (Moonslave)