Treinos, treinadores e técnicas é um texto escrito por Sara Favinha no seu blog Tudo de Cão e que eu "roubei" e postei aqui por ser um texto que considero importante que se leia. Espero que gostem tanto de o ler como eu. Em cima uma foto do Leo da Sara e do sua cadela linda a Meg.
Não encontrei um título melhor para esse post. Parar e lembrar da época em que comecei a treinar animais se tornou algo motivador. Muitas pessoas nos procuram para iniciar nessa área. Algumas delas já possuem algum conhecimento, outras não. Algumas já treinaram diversos cães, com outros métodos, e nos olham surpresas treinando os nossos.
Eu e Leo somos muito parecidos em alguns aspectos, mas dois chamam a atenção. Nossa necessidade de aprender e nosso aperfeiçoamento constante. Parecemos dois malucos, daqueles bem esquisitos e cheios de manias, testando e experimentando constantemente. Qualquer comportamento diferente é motivo para uma conversa de pelo menos meia hora. E isso minha gente, enriquece demais uma pessoa.
Quando comecei, eu não sabia ler os cães e achava que treinar era só aprender a ensinar os comandos. Não imaginava que treinar estava intimamente ligado à compreensão do comportamento animal, da aprendizagem, da linguagem, das técnicas e suas nuances. Hoje enxergo um mundo tão complexo com um simples "Senta". Nos primeiros 5 min de um primeiro encontro com um novo aluninho, já se torna óbvia a relaçao que o cão tem com o dono e qual seu grau de socialização, o quão confiante ele é, e enquanto o dono vai falando, pergunto sobre alguns sintomas e comportamentos, o que faz parecer que sou vidente. Quando percebi isso compreendi: o primeiro degrau já foi alcançado.
Se compararmos a mudança do nível técnico do treinamento de animais no Brasil há 10 anos e hoje, ficamos assustados. Logicamente existem pessoas que treinam da mesma forma, mas há outras, principalmente as mais novas, que estão realmente interessadas em algo diferente.
Meu próprio treino mudou muito, nas técnicas, na abordagem, na dinâmica, na sequência, nas coisas novas que fui aprendendo e incorporando, na habilidade de conversar com os donos, etc. E espero que daqui a 10 anos, eu olhe prá trás e veja novamente outra Sara, muito diferente.
Um exemplo prático é quando uma pessoa me procura e conta todo o histórico de punições que aplicou no cãozinho. Saímos na rua e ela dá um tranco atrás do outro no pobre coitado. Quando eu explico para ela que punição não é a maneira mais eficaz de ensinar, sou olhada com espanto. 'Mas foi assim que aprendi Sara, é assim que vejo na televisão, em diversos canais!' Aí eu faço duas perguntas bem simples: - Como você gosta de aprender? Como você aprende melhor?
É necessário que os treinadores entendam que:
1. Trancos realmente machucam os cães. Eles são absolutamente desnecessários. Não busque resultados rápidos, se forem prejudiciais aos cães. Busque resultados eficientes e duradouros. Um cão pode ficar paraplégico por receber sucessivos trancos.
2. Punição só extingue comportamento quando é aplicada 100% das vezes em que o comportamento ocorre e/ou se for traumática (o que significa que gerará diversos efeitos colaterais e medo ou fobia).
3. Qualquer animal (estamos incluídos, amigos!), aprende de forma muito mais eficaz e consistente quando não está com medo.
Eu senti isso na pele e essa experiência foi ótima para que eu pudesse entender o mecanismo da coisa. Quando quebrei o joelho, além de toda a dor que tive, passei por alguns exames físicos de patela dolorosos. Era entrar no consultório eu já começava a suar.
Depois, tive um episódio de pedra no rim, em que passei por exames de ultrassom traumatizantes para qualquer ser humano. Quando voltei para o médico (olha a associação negativa), nem me lembro se era do joelho ou do rim, meu corpo começou a tremer. Eu até que estava tranquila, mas a memória das associações foi tão forte que meu corpo simplesmente respondeu. Eu tremia muito, até a boca, a ponto de quase não conseguir falar com a pessoa, que perguntou se eu estava com frio.
Eu tentava me controlar e sabia na minha cabecinha inocente, que não iria passar por nenhum procedimento tão doloroso naquele momento. Fui até o banheiro e fiz uma 'respiração de grávida', mas o resultado não foi imediato. Senti realmente a adrenalina e as reações corporais ao simples estímulo de estar no local e com a pessoa que antes havia associado negativamente. Na hora lembrei dos pobres cachorrinhos no veterinário ou no banho e tosa. E entendi na prática porque muitos deles não aceitam comida nessas situações. Bem, eu realmente não iria conseguir comer uma torta de chocolate naquela hora, e até me forcei a imaginar a sensação, para entender a incompatibilidade da coisa. Esperei para ver quanto tempo depois eu sentiria fome, e demorou umas 3 horas. O mecanismo do meu sistema digestivo estava totalmente suprimido.
Todas as vezes que provocamos medo nos animais, uma associação negativa é criada. Mesmo que a pessoa 'finja' que ela não foi a causadora do susto ou da dor, o cão é suficientemente esperto para relacionar a presença da pessoa à situação. Quando se monta armadilhas, um dos efeitos colaterais é o medo generalizado do ambiente. Em outras situações, que deveriam ser normais para os cães, como passeio na rua, visita ao veterinário, andar de carro, encontrar outros cães, receber visitas, podem ocorrer associações negativas sem que a gente nem perceba.
Quando começamos a expor o filhote, dentro e fora de casa, as associações estão sendo imediatamente criadas, à medida que o cãozinho conhece pela primeira vez a grande variedade de estímulos a que estamos expostos em um dia normal. Estas associações vão sendo reforçadas na segunda, terceira, quarta vez. Em alguns casos ocorre um imprinting imediato, ou seja, a associação é criada na primeira exposição ao estímulo. Geralmente ocorre de forma mais intensa com associações negativas, pois disso depende a 'sobrevivência' do cãozinho, pelo menos na cabeça dele (fugir, se esconder, paralisar, atacar).
Por isso, é muito importante:
4. Criar associações positivas com os mais variados estímulos, o máximo que conseguirmos, em diversas sessões consecutivas.
Voltando aos tempos em que comecei a aprender como ensinar o cãozinho a Sentar*, eu também não compreendia que tudo isso leva tempo. Não adianta entupir um aspirante super entusiasmado com o montante de informação e experiência que temos. Isso precisa ser digerido, aplicado pouco a pouco, associado com experiências e conclusões próprias, e um desenvolvimento do feeling e da capacidade de percepção na observação dos comportamentos, que é gradual, e cada um tem seu tempo. Foi exatamente isso que ocorreu comigo*. Por isso acho que essa leva de novos adestradores ainda pode render muitos bons frutos.
* O comando Senta pode não ser tão simples como parece. Pense no seu cão, há 15 metros de distância de você, na Avenida Paulista, respondendo ao seu comando para sentar, com latência zero e foco 100%. Simples não?
* Ficamos extremamente felizes quando vemos alguém que fez nossos cursos ou estágio, conseguindo resolver sozinha um problema, criando novas soluções (e nos ensinando também).
3 comentários:
Adorei este texto. Achei a abordagem muito interessante. Pormo-nos no lugar do cão.
Com os meus cães, já deu para perceber que cada caso é um caso e que cada um reage e aprende de maneira diferente. A cada texto que leio, cada dica que oiço, vou aprendendo um pouco mais. O meu deal é tornar-me a dona que os meus cães desejam que eu seja.
Olá Claúdia! Obrigado pelo seu comentário no meu blogue. Não é por mera cortesia que digo que também gostei muito do seu. Textos muitos interessantes. De certo modo, faz uma certa sociologia animal...
Cumprimentos,
Filipe
http://sociologando.wordpress.com
Olá Cláudia!
Se tu gostaste do blog da Pipa, só te digo... não tenho palavras para o teu. E é por isso que vou pôr um link para este blog no meu.
Muitos parabéns!
Votos de imensos sucessos. A paixão pelo que fazes é incontestável!
Carla (Pipa)
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